terça-feira, 25 de agosto de 2009

CONTO: A PAZ QUE PROCURO



A PAZ QUE PROCURO

Amanheceu. Os raios solares transpassavam as frestas da janela onde dormia a pequena Beatriz. Com os cantos desafinados de sua mãe na cozinha, acompanhando uma música de Roberto Carlos pelo antigo rádio à pilha, Beatriz acordou eufórica, correu para a bica onde se pôs a lavar seu rosto. A mãe Catarina interrompeu a cantoria e ralhou com ar de brincadeira:
___ Que é isso menina? Até parece um pé de vento que passou! Não me pediu a bênção e anda rápido para depenar a galinha que seu pai matou, ora essa! Êta menina!
Com um sorriso alegre e suave, Beatriz veio para a cozinha, pegou uma caneca de café no bule, tirou um grande pedaço de broa de fubá e também um pedaço de queijo, sentando-se no canto do fogão de lenha como de costume. Enquanto comia, deixava-se viajar em sua imaginação.
Menina sonhadora, inteligente, franzina, pele queimada de sol, adolescente, com seus doze anos, mas tamanho e aparência de criança. Menina feliz, cujo seu olhar irradiava e contagiava uma paz profunda. Sua voz suave como a brisa da manhã, seu sorriso meigo, afetuoso, porém, um pouco tímido. Vivia num simples casebre no interior de Minas Gerais, cercado de verdes paisagens que inundavam os olhares com as mais belas obras divinas. Os sons que se ouviam naquele “pedacinho de céu”, (nome dado por ela referindo ao seu lugarejo), eram os dos pássaros, a de uma deslumbrante cachoeira e do vento fresco e sereno que propiciava nas copas das árvores um balé sincronizado. Às vezes, essa paz era interrompida pelos sons dos berrantes, entoando canções que se ecoavam nas modeladas montanhas de pedras. Ali perto passava uma antiga estrada boiadeira, e os peões, numa organizada comitiva, conduzia o gado entoando assovios e canções rumo às tabladas. Ou então, pelas badaladas das sinetas das bestas de cargas e do ritmo preguiçoso dos carros de bois vindos da cidade grande, para abastecerem os pequenos comércios do lugarejo.
Sua rotina consistia em ajudar a mãe nos serviços da casa como também nas faxinas duas vezes por semana na fazenda vizinha, a mesma em que seu pai trabalhava. Também estudava numa escola improvisada, uma tapera doada pela família de Dona Gertrudes, avó da professora Isolina, a qual se dedicava com muito carinho sua profissão, mesmo com o baixo salário que recebia e as condições precárias que trabalhava. Nas horas de folga, ajudava seu pai e o irmão mais velho nas lavouras para o sustento da casa, enquanto sua mãe cuidava dos outros dois irmãos, um de oito anos e o outro, caçula, com dois apenas.
Beatriz aproveitava cada dia como se fosse o único, mas, o dia que ela mais gostava era o domingo.
Ah! O domingo! Dia de levantar mais tarde, brincar com os irmãos, receber visitas de parentes e amigos como também visitar os outros. E sem falar no almoço: galinha caipira, macarronada, arroz, tutu e palmito, acompanhado de uma grande jarra de limonada. À tarde, Beatriz ia para o seu quarto e se arrumava frente a um velho espelho quebrado, tendo como ajuda as maquiagens ganhas das tias da cidade. Elas ficavam guardadas como se fosse um tesouro, em uma capanga, dentro de um velho baú, lugar onde só ela sabia. Estando pronta, toda a família ia para a celebração do culto na pequena capela de Santa Bárbara. Beatriz e a mãe cantavam no coral da comunidade junto com mulheres e outras meninas daquele lugar. Depois do culto, ficava de conversas com os amigos até o anoitecer, indo embora com o clarão da lua ou das lindas estrelas que iluminavam o céu.
No terceiro domingo de cada mês, como de costume, o padre Olavo celebrava na pequena capela. Vinha gente de todos os cantos: a pé, em carros de bois, a cavalo, e os fazendeiros mais ricos como senhor Jurandir e senhor Carmo vinham de jipes ou fuscas, o que provocava olhares curiosos da rapaziada. Aquele dia era especial, dia de vestir as roupas mais novas que eram ganhas de uma prima da cidade. A missa era celebrada por volta das quatorze horas e em seguida tinha o leilão em benefício à restauração da capela. Toninho da Benedita era quem leiloava as prendas oferecidas pelos moradores do lugarejo. Com sua voz rasteira e grossa e a insistência permanente, muitas das vezes a pessoa arrematava a prenda leiloada para ter um pouco de sossego nas prosas com os compadres. A disputa ficava acirrada guando Toninho da Benedita desafiava indiscretamente os dois fazendeiros, senhor Carmo e senhor Jurandir. Um não queria perder a prenda leiloada para o outro, então os lances iam altos. Os camaradas juntavam-se a seus patrões pondo mais fogo na fogueira encorajando-os nos lances até que um desistisse, mas, este alertava sorrindo conformadamente: ___O próximo é meu! Toninho da Benedita entregava a prenda leiloada e piscava para o padre Olavo, que baixava a cabeça rindo disfarçadamente da grande proeza alcançada por Toninho.
Em uma ocasião, dona Luzia, esposa de senhor Carmo, levou junto com suas prendas uma leitoa assada, a disputa foi tão grande que se ouvia de longe os gritos atiçadores dos jovens e os alaridos das crianças a cada lance oferecido. No final, padre Olavo quase desmaiou ao receber o valor da leitoa que atingiu o mesmo valor de uma junta de bois de carro, usado no serviço de aração de terras. O próprio senhor Carmo saiu como vencedor e ofereceu o primeiro pedaço da leitoa ao seu compadre Jurandir, acompanhado de um copo de cachaça, dizendo que era para consolo, e abraçavam alegremente.
Durante o leilão, os mais velhos aproveitavam o encontro para negociar, tratar dos assuntos das roças como plantio, capina, colheita... Os rapazes flertavam de longe as garotas, mandando-lhes balas ou pastéis de presente. As crianças brincavam o tempo todo, sendo interrompidas de vez em quando pelas mães para conferir se não estavam sujando as roupas. Ao chegar à tardezinha, ao término do leilão, Mané da Chica, Quinca da viola e Bento se reunia embaixo da choça improvisada de bambus e coberta de sapés, cada qual com seu instrumento, um acordeão oitenta baixos, uma viola e um violão. Enquanto iam afinando seus instrumentos, o povo se reunia à espera de algo já premeditado, e como não faltava, eis que aparecia Zé do mé. Peão astuto, forte, rosto queimado pelo sol, conhecido assim por ser um grande apreciador de uma boa canjebrina, exagerando sempre em suas doses. Contudo, era talentoso em um desafio, apenas Quinca da viola o acompanhava. Com o litro de canjebrina no chão e um coité onde era servida a bebida, começavam a cantoria. As crianças eram as que mais apreciavam, molhavam as calças de tanto rir dos versos improvisados; as respostas na ponta da língua a cada insulto do companheiro geravam assobios e palmas para o calangueiro. O calango terminava quando o litro de cachaça chegava ao fim, então se cumprimentavam sob as palmas dos ouvintes. Os tocadores paravam um pouco para descansar, bebiam e comiam uns tira-gostos e preparavam novamente seus instrumentos, agora para o tão esperado arrasta-pé, principalmente para os solteiros, que viam naquele momento a hora certa de conquistar as donzelas. O forró acabava quase de madrugada. Ao ir embora, encontrava-se com alguns casais de namorados apreciando o céu e às vezes com o Zé do mé, deitado, tentando cantar alguns de seus versos improvisados, totalmente embriagado.
Contemplando aquele céu incandescente pelos brilhos das estrelas, Beatriz sentia a felicidade plena, a paz dentro de si. Pensava ela, que para tornar-se a pessoa mais feliz do mundo bastava apenas realizar seu sonho: estudar, ter uma profissão digna, viajar por esse imenso país e quem sabe, pelo mundo, e um dia contar ao seu povo todas as maravilhas criadas por Deus, que não couberam diante dos seus olhos. Sonho difícil para qualquer pessoa daquela época, mas não para ela, disposta a vencer qualquer obstáculo.
Dois anos se passaram e exatamente num domingo Beatriz recebeu a visita de sua tia e madrinha Joana. A pedido das cartas que Beatriz lhe mandava, Joana veio com o propósito de convencer sua irmã Catarina e o cunhado Abelardo, pai de Beatriz, em levar a menina para morar com ela, na capital. Beatriz iria continuar seus estudos que foram interrompidos na 5ª série, pois a escola mais próxima em que se concluía o Ensino Fundamental até o segundo grau completo, ficava a trinta quilômetros de sua casa, sendo pago o transporte e a merenda escolar, estando fora das possibilidades financeiras de seus pais.
Joana havia ficado viúva, e seus filhos já maiores de idade, mudaram-se pára outros estados em dedicação às suas profissões. Sentia-se solitária, mesmo com a alta conta bancária e as viagens que fazia mensalmente, precisava de uma companhia, e via em sua afilhada a pessoa ideal, pois a alegria contagiante de Beatriz traria de volta sua felicidade.
Ao término de uma semana de visita e discussões sobre o assunto, decidiram-se que Beatriz fosse, mas vindo visitá-los em suas férias. A pequena mocinha não se conteve de tanta emoção. Lágrimas lhe cobriam o rosto miúdo. Seus sonhos, prestes a serem realizados, eram interrompidos momentaneamente pela saudade que já começava a brotar. Saudade de seus pais, de seus irmãos, seus amigos, sua liberdade. Mas, sua obstinação em realizar-los, lhe fez levantar a cabeça, enxugar o rosto e despedir dos seus. E se foi. Apenas com a roupa do corpo.
O tempo também se foi. Beatriz concluiu os estudos fundamentais e o ensino médio. Especializou-se em comunicações na faculdade. Sempre em contato com sua família, mas, anos sem poder visitá-los em sua terra natal devido sua corrida vida profissional. As saudades apertavam-lhe o peito.
Com sua garra e determinação, cursou o mestrado e mais tarde, o doutorado. Viajou a trabalho para o exterior exercendo relações diplomáticas. Voltou ao Brasil para o sepultamento de sua tia Joana onde reviu a família, no qual o último encontro havia ocorrido em sua formatura de doutorado, há cinco anos. Casou-se com um rico empresário. Homem bom, honesto e fiel. Desse amor nasceu uma menina, a qual recebeu o nome de Vitória.
Durante todos esses anos, Beatriz mandava dinheiro para sua família, pedindo também informações daquele povoado. Chorava ao receber por cartas notícias de falecimentos de amigos ou parentes e se alegrava com as boas notícias dos progressos do seu “pedacinho de céu”. Ajudava também na construção da nova igreja e do colégio, onde ela mesma havia iniciado o projeto. Apesar da distância, algo ainda lhe prendia em seus tempos de criança daquele lugar.
Quarenta anos se passaram desde o dia em que se mudou para a capital. Beatriz chegou ao cume em suas realizações profissionais, viajou pelo mundo, conheceu lugares, pessoas e culturas que jamais pensava em existir. Aprendeu vários idiomas, levando em cada cantinho do planeta uma palavra amiga, um sorriso no rosto. Suas palavras e seu olhar transmitiam uma paz ilimitada até mesmo nas pessoas que sofriam pelos terrores das guerras. Tudo em que um dia sonhara estava ali, porém, Beatriz ainda procurava algo para completar a felicidade plena em que um ser humano pudesse alcançar, pois, sentia um vazio em seu íntimo.
Após noites de insônias e diálogos com seu esposo e sua filha, decidiu se afastar da carreira profissional temporariamente e visitar o lugar onde nasceu, rever seus pais que há anos não os via devido à idade avançada em que eles se encontravam, não podendo viajar. Rever também seus amigos de infância e tudo o que pertencia ao seu coração, às lembranças sempre vivas em sua memória. Sentir novamente o cheiro da terra, da chuva, ouvir o linguajar do seu povo, o jeitinho matuto de viver e o gosto do almoço de domingo feito no fogão de lenha.
Junto com o marido que muito lhe compreendia e queria bem, viajaram durante dois dias até chegarem ao seu lugarejo, antes conhecido pelo nome de Santa Bárbara, devido à padroeira da capela, agora em uma grande placa na entrada da encantada cidadezinha exibia-se o nome: Seja bem vindo a Padre Olavo de Albuquerque, nome dado em homenagem ao padre já falecido que muito trabalhou naquele lugar. Ao chegar a uma pequena pracinha, Beatriz pediu ao marido que parasse o carro. Seus olhos inundaram-se de lágrimas percorrendo cada cantinho daquele lugar, mesmo com a chegada do progresso, ainda se mantinha aquele mesmo ar do antigo vilarejo. Ao fechá-los, um filme passou em sua memória. Ali mesmo onde se sentara foi o palco dos grandes desafios; a velha choça de bambus e sapé deu lugar a um charmoso coreto cercado de hortênsias e lírios. A velha capela havia se transformado numa igreja ainda em fase de acabamento, o terreno onde eram realizados os leilões transformou-se num espaçoso adro frente à igreja. Os trilhos viraram ruas calçadas, onde já se transitava um número maior de veículos. Olhou ao redor das ruas e viu um posto de saúde, uma loja agropecuária, uma loja de roupas e calçados e também um mercado bastante movimentado. Beatriz se levantou, tirou suas sandálias de saltos e se pôs a andar pelo gramado do pequeno jardim, dali avistou o colégio, o qual ela mesma tanto se empenhou para construí-lo. Seus ouvidos captaram uma antiga canção que há muito tempo não se ouvia, era a canção de um velho carro de boi acompanhada dos gritos do candeeiro: ___ Afasta trovão! Encosta tempestade!
Beatriz limpou as lágrimas de felicidade com seu inseparável lenço de seda, sentou-se novamente não entendendo o que acontecia dentro de si. Caminhou-se até o carro para ir ao encontro de seus pais, mas foi interrompida por uma criança com um lindo lírio nas mãos dizendo:
___ Seja bem vinda dona Beatriz, nós te amamos.
Beatriz olhou em volta e se emocionou ao rever muitos dos amigos de sua época. A criança que havia lhe entregado o lírio fazia parte dos alunos do colégio que vieram com suas professoras recepcioná-la. Abraços apertados se deram a cada encontro. Os mais novos consideravam-na como uma celebridade, mas quem a conhecia sabia que era a mesma menina sonhadora, só que agora, adulta.
Aproximou-se então um casal de idosos, o homem sendo conduzido em uma cadeira de rodas e a mulher amparada por uma jovem, eram seus pais. Ao vê-los Beatriz não se conteve, correu ao seu encontro, porém não tinha mais palavras. Sentiu-se o que há muito tempo não sentia e era o que exatamente procurava durante toda a sua vida. Estava ali, naquele “pedacinho de céu”, a felicidade plena, a paz interior, a paz cobiçada por todo ser humano, a paz que o sucesso e o dinheiro não conseguiram comprar. Seu choro confundia-se com os aplausos dos transeuntes, seu coração e sua mente só sabiam de uma coisa: naquele paraíso viveria para o resto de sua vida.


Autor: Wilmar Campos de Siqueira
10/02/2009

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